Algumas considerações:
O trabalho do arquiteto por muitas vezes se baseia em projetar. Projeção é a antecipação da imagem, e, nesta profissão, do viver. É projetando que o arquiteto antecipa as funções da casa, a circulação, o espaço adequado à interação e escala humana, a estrutura, a técnica e a forma. A partir do movimento moderno que o arquiteto passa também a se tornar o projetista não somente do espaço construído, mas do novo homem moderno. Isto é, para o arquiteto moderno a arquitetura possui uma função educacional. Nesse novo padrão, cabe também ao arquiteto projetar não somente a arquitetura mas escalas complementares: dos talheres à cidade.
Há ainda dois outros fatores que reforçam a noção de pluralidade da função do arquiteto: a educação acadêmica e o espaço comum da prática profissional¹.
A educação arquitetônica é sabidamente polivalente, por vezes apropriando-se do desenvolvivemento teórico de outros campos como antropologia e estudos sociais, por vezes tendo suas instituições de ensino derivadas de outras - exemplo desse último o caso da FAU-UFRJ sendo descendente da Beux-Arts. Enquanto isso a prática profissional demanda do arquiteto uma função de coordenador de equipes e disciplinas - para o qual só estará apto a realizar caso possua conhecimento gerais suficientes sobre todas as etapas de projeto e execução.
A consequência da soma desse paradigma moderno ainda vigente, da polivalência educacional e do espaço comum da prática profissional refletem em uma demanda profissional cada vez mais ampla de controle; o projeto total. Podemos elencar então quais as duas principais características que implicam em um projeto totalizante:
Multiplicidade de escalas de intervenção;
Controle e coordenação de diversas disciplinas no projeto e/ou na obra;
Advém dessa pequena interpretação provocações inúmeras que podemos explorar posteriormente, mas que para esse momento interessa questionarmos: qual deve ser o limite do projetar? Evidentemente que como profissionais podemos sim fugir à tendência e nos propormos à especialização, mas é a excessão que confirma a regra e, mesmo nesse caso, a pergunta continua válida.
Há então dois exemplos que podem trazer elucidações sobre esse limite projetual: Brasília e o Apartamento de São Conrado².
Brasília:
O projeto para a capital do país apresenta provavelmente o mais alto exemplo de projeto totalizante. À dispensar os palácios que ficariam à cargo de Niemeyer, a proposta ganhadora desenhava e designava aspectos da vida urbana e pessoal de seus futuros moradores enquanto simbolicamente também projetava a nova utopia americana para os demais brasileiros. Todavia Lúcio Costa demonstra em diversas ocasiões a consciência do indeterminismo como agente, como avalia Margareth Pereira:
[...] o projeto de Lúcio Costa venceu o concurso porque, apesar de seu olho onividente e de sua vontade de regular todos os aspectos da vida dos homens [...] ela [Brasília] contava com a força do homens para se apropriar desse espaço e impregna-lo de suas histórias vividas, de seus próprios projetos. - PEREIRA, Margareth. ³
O que Margareth tem a genialidade de apontar sobre o projeto do mestre modernista é que Lúcio Costa demonstrou sensibilidade projetual ao entender que sua cidade, ruas, blocos residenciais e apartamentos seriam apenas o palco sobre os quais a vida poderia se desenvolver. O projeto existe mas cria também o espaço da incerteza, do improvável. É "uma cidade pronta mas sabendo-se inacabada" enquanto não for apropriada.
Quase trinta anos mais tarde [da construção de Brasília] ele fazia o balanço: "A sensação urbana é de grande beleza. A realidade é, finalmente, muito mais bonita, mais rica e melhor do que a proposta teórica. O sonho foi muito menor do que a realidade". PEREIRA, Margareth.
Fica evidente que Lúcio compreende que a apropriação do seu projeto é a etapa consolidadora do projeto em sí. Embora urbe, é em sua escala arquitetônica que Brasília demonstra as mais evidentes apropriações. Isso ocorre pois quanto menor for a escala do projeto, mais claro são os sinais e indicativos de apropriação, enquanto escalas maiores naturalmente demandam ações organizadas ou comportamentos coletivos.
A Rodoviária do DF marcada pelos vendedores ambulantes: apropriação espacial de comportamento coletivo. Reprodução: Semob
A Rodoviária do DF em projeto de reapropriação conduzido por ações organizadas pelo estado. Reprodução: Semob
Fica então relegado à uma pesquisa mais atenta se o arquiteto projetou intencionalmente condições favoráveis para diversas apropriações ou se somente limitou suas intenções projetuais tendo em conhecimento que a apropriação é inevitabilidade da arquitetura. Apesar dessa incerteza, podemos dizer que o projetar ou simplesmente reconhecer esse apropriar-se torna o projeto de Lucio Costa melhor ou, contraditoriamente, mais completo embora não seja totalizante?
São Conrado:
São Conrado 925 trata-se de um projeto residencial. O edifício possui características que permitem reapropriações e reinterpretações do programa funcional, embora não seja claro se isso era uma diretriz projetual.
Nosso trabalho constou em adaptar o apartamento em sua gradação entre espaços privativos e espaços coletivos. Era evidente que a disposição dos cômodos criava um corredor extenso que roubava a metragem e criava áreas demasiadamente escuras, além de acarretar em uma cozinha desconforável.
O projeto realizado também contemplou o detalhamento de móveis e armários fixos, especialmente aqueles referentes à cozinha e roupas, mas não houve o desenvolvimento dos demais mobiliários por questões financeiras.
Ao revisitar o apartamento presencialmente após sua ocupação não pudemos deixar de notar algo estranho. Uma certa ausência. O apartamento encontra-se pronto, mas sabendo-se inacabado. Seja pela falta de tempo adequado, seja por falta de dinheiro ou até mesmo por um não interesse dos moradores, o apartamento demonstra não ter sido ainda apropriado. É interessante pensar que talvez a apropriação se exprima em estética, à ponto que reconhecemos espaços apropriados ("espaços vividos" em expressão coloquial) e espaços ainda não apropriados. Cabe também questionar uma possível terceira fase dessa "estética"- os espaços abandonados⁴.
Mantendo-nos nos trilhos da indagação original, mesmo que haja a ausência, não acredito ser viável ou proveitoso forçar o projeto totalizante, especialmente onde ele sobrepõe o espaço do indeterminismo e da apropriação. É compreensível a ânsia tanto do arquiteto quanto de alguns clientes em ter essa estética disponível como produto - afinal já estabelecemos que a apropriação é a consolidação do projeto⁵. A primeira armadilha que surge dessa vontade de ver o espaço criado é evidentemente a falsa apropriação que acaba trazendo um sentimento de "kitsch". Em segundo, é compreensível que a rigidez do projeto totalizante é por vezes opressora em sua determinação, possivelmente vilanizando a arquitetura diante seus usuários.
Deixa de ser Kitsch se você não souber o contexto? - Reprodução Casa Vogue ⁶
Por fim, não deve ser a possibilidade de instatisfação do projeto totalizante que deve ditar a necessidade do projeto indeterminado, mas sim a compreensão que o indeterminado é demanda projetual pois é inerente à vida dos homens. Projetarmos afim de possibilitar a indeterminação é tornar o projeto mais completo, mais acessível e mais amado, pois apropriar-se também é construir relações emocionais com o espaço. A diferença semântica entre casa e lar.
1 - Consideramos o espaço comum da prática profissional o trabalho residencial e comercial.
2 - Desculpem a prepotência.
3 - PEREIRA, Margareth. Textos fundamentais sobre a história da arquitetura moderna brasileira : v2 / organização Abilio Guerra - São Paulo: Romano Guerra, 2010.
4 - Também conhecido por termos como "Ruin Porn" a estética do abandono pode ser facilmente interpretada como a estética da desocupação, do desapropriado. Para mais informações sobre o fenômeno estético das ruínas recomendo esse pequeno artigo.
5 - Inclusive é prática vender os espaços urbanos e comerciais já populados de pessoas e atividades que comprovem o sucesso do empreendimento.
6- LOTT, MICHEL Conheça a nova casa da atriz Bruna Linzmeyer - CASA VOGUE -São Paulo 2017. Disponível em: https://casavogue.globo.com/Interiores/apartamentos/noticia/2017/02/conheca-nova-casa-da-atriz-bruna-linzmeyer.html Acesso em: 07 dez. 2023.
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